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O Éden psicológico: onde a fé na bondade dá luz a união



O modo como compreendemos o mundo direciona nossa ação, nosso pensamento e nossos estados emocionais. No limite do que o livre arbítrio alcança, colocamos contornos para o curso que nossa vida toma, dia após dia, ao afirmarmos nossa forma de ver o universo circundante. Assim, se, por alguma razão, acredito que o mundo é puro, vou agir também de forma pura, ingênua. Eventualmente, posso estar em risco ao me comportar assim. Por outro lado, se suponho que o mundo é tomado de má fé, minha ação será constantemente defensiva, vigilante... Talvez paranoica. Potencialmente, enlouquecedora.


Em um dia da sempre curta estação chuvosa na capital goiana, recebi a carta da Maria Júlia. Não nos conhecemos pessoalmente, tampouco por redes sociais. Maria Júlia deixou o manuscrito na minha caixa de correspondência, aquela que olho no início do mês para constatar os aumentos da conta de luz.

Em época de fake news enviadas pelo WhatsApp, Maria anunciou, em seu gesto oldschool, o desejo compartilhar um pouco da sua esperança e solidariedade. Ela tinha boas novas, em seu entendimento. Na carta, dizia que “a terra vai se tornar um verdadeiro paraíso, assim como era o Jardim do Éden. Quando Deus criou o primeiro casal humano”. Antes disso, havia partido da premissa “vivemos em um mundo onde a maioria das pessoas odeiam umas as outras. (...) o ódio pode fazer alguém desrespeitar uma pessoa, inventar mentiras sobre ela ou até mesmo desejar que ela morra”. Cabe fazer algumas correções nesses períodos, Maria Júlia, mas não vou me ater à gramática: é mais urgente pensar com coerência do que com observância à norma padrão de escrita.


As palavras de Maria Júlia me colocaram a refletir. Primeiramente, penso que a gentileza de alguém que, sem nada objetivo em troca, oferece seu tempo para deixar uma carta manuscrita na caixa de correspondências de um estranho é sinal de que, por mal que estejamos, há bondade no mundo. Em segundo lugar, Maju – me permita assim chamá-la, pois acho que poucos nomes bonitos geram apelidos igualmente bonitos assim – , eu não acredito que a maioria das pessoas esteja se odiando. Acrescento, ainda, que sua generosidade não é caso isolado, na minha percepção.


Eu não vivencio o cotidiano do ódio interpessoal direto. Tenho acesso a noticiários que abordam fatos de desigualdade, injustiça e ódio terríveis, no entanto, sei que o que é reportado a mim diz respeito à forma como nos organizamos socialmente e não a simples intenções individuais. Afora desanimadores dados estatísticos, tais como o fato de que apenas três em cada dez crianças no Brasil têm acesso a três refeições diárias (Sisvan – Ministério da Saúde, 2021) ou que nosso país é número 1 em assassinatos de pessoas transgênero (Benevides e Nogueira, 2021), outras notícias trágicas chamam a atenção e merecem destaque, manchete, justamente por sua característica de excepcionalidade. Nesse sentido, entendo que o rapaz que levou uma arma para a escola e assassinou outras pessoas é uma exceção, já que essa situação (essa sim uma intenção individual, mesmo que socialmente gestada) não acontece diariamente na nossa cidade. Por outro lado, entendo que tem alguém com fome, todos os dias, cruzando meu caminho até o trabalho pela manhã.


Fiz toda essa digressão só para justificar meu posicionamento, nutrido na vivência cotidiana. Não vejo ódio em cada ser humano à minha volta. Não porque não exista esse sentimento nos bons seres que me cercam, mas porque direciono o olhar a outros sentimentos presentes nessas relações. Entendo que o ódio mais perigoso não é aquele que disputa espaço com outras paixões privadas. O ódio realmente perigoso é aquele que viraliza a cada manifestação de ignorância compartilhada. É o que permite que grupos bem-intencionados sejam cooptados para projetos de extermínio de pessoas vulneráveis, por asfixia, inclusive. Para ser mais didático, ódio é aquilo que mobiliza grupos de pessoas cristãs, de valores, portanto, pretensamente cristãos, a defenderem a tortura. Se a contradição lhe não parecer óbvia, reflita: Cristo defenderia a tortura, sob algum argumento?


Maju, creio que, assim como eu, você também acredita no livre arbítrio. Da seara psicológica, a partir da qual escolhi contribuir com alguma coisa para os outros, chamo a atenção para a importância da visão de mundo no comportamento de uma pessoa. Se nós damos um foco muito individual, talvez até pessoal, às causas das desgraças cotidianas, corremos risco de odiar aos outros. Você me disse que "as pessoas se odeiam". Cuidado, talvez você não queira tomar consciência sobre seu próprio ódio.


Se você acredita no ódio quase unânime à sua volta, cuidado. Para além da sempre valiosa provocação freudiana sobre o significado daquilo que escapa à consciência, gostaria de lhe alertar que seu comportamento, embora repleto de boas intenções, pode acabar por se mostrar muito distante das idealizações que você afirma ter como desejo. Não podemos, Maju, alcançar o “Jardim do Éden psicológico” quando acreditamos que o mundo é podre em más intenções. Isso nos colocaria em situação de fazer um esforço muito grande para não destruirmos nossos semelhantes, pois, afinal, se a maior parte do que me cerca é ódio, haja forças para não me contaminar. Não haveria um dia de paz na vida do crente.


Eu opto por viver meu Éden psicológico ao, cotidianamente, ver a bondade do que me cerca. Meu sentimento é de que, no banal do meu dia a dia, estou realmente cercado daquilo em que acredito. Daqueles nos quais acredito. Não estou, assim, cercado de ódio, inveja ou desejo de destruição mútua, embora saiba que todos esses afetos difíceis convivem dentro de cada um de nós. A diferença de perspectiva que adoto é que esses afetos não prevalecem, ao menos não na maior parte do tempo. Tomo como pressupostos a bondade, o desejo de construir em conjunto, a vontade de viver um mundo melhor e mais justo. Nesse sentido, muito me orgulho dos meus ideais cristãos.


Ainda em uma perspectiva psicológica, entendo que nossas intenções conscientes e nossos desejos inconscientes direcionam o modo como nos relacionamos, nossas expectativas no contato com o outro e nossas projeções de futuro. Tendo em vista que não temos consciência de todos os nossos desejos (a rigor, desejos são de natureza inconsciente), cabe a nós ajustar o que desejamos de modo a viabilizar a convivência social. Por exemplo: se em uma análise muito franca das minhas motivações me dou conta que faço caridade para me livrar de quem me importuna com um pedido de esmola, isso pode apontar algo sobre meu modo de relacionamento humano. Eu pago para não ter contato, para evitar o outro? Tem gente próxima recebendo minha esmola também? Perguntas pesadas, né?


Maju, eu não consigo lidar nem com a culpa da minha oferta miserável de esmolas. Eu não julgo a você, portanto, se sua oferta de entregar cartas manuscritas em um dia de chuva foi motivada pela culpa. Estamos no mesmo mar... Ainda assim, quero lhe oferecer algo valioso e ficarei contente se você avaliar como uma boa nova. Tenho uma boa e antiga recomendação: é possível manejar a culpa, desde que consigamos localizá-la, compreender sua história dentro de nós. Vivendo em meio ao caos e à injustiça, sentir alguma culpa só mostra que não somos perversos. Vejo essa bondade você, Maju. Nela vamos nos solidarizar. Vamos seguir mais unidos, odiando menos e com mais consciência sobre nossas culpas e outros fantasmas. Acredito que o Éden, mesmo utópico, pode ser um sonho vivido em conjunto.


Boas festas, meus amigos e amigas. Um abraço especial a você, Maju.


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